domingo, 7 de novembro de 2010

VIAGEM NO PASSADO

Como era bom viajar no trem de passageiros na minha infância. Saía de Alegrete para Santa Maria, Porto Alegre, Cacequi, Uruguaiana, em verdadeiras aventuras infantis que me faziam sentir que Júlio Verne talvez também tivesse experimentado a mesma sensação. As viagens eram demoradas, cansativas, barulhentas e pouca comodidade era uma marca, mas era maravilhoso encontrar tanta gente diferente, vindas de outros lugares do Rio Grande do Sul ou até mesmo de fora. Os contrastes eram enormes em diversos aspectos, o que criava um ambiente encantador e ao mesmo tempo estranho. Lembro que passeávamos de vagão em vagão, só pela necessidade de não ficar parados, deparando-nos com paisagens lindas e com pessoas estranhas. Vi uma vez um homem conversando com um papagaio, outra vez uma senhora entrou no trem com um saco cheio de galinhas vivas, uma galinha escapou e foi um "bochicho" daqueles, até que alguém imobilizasse a penosa. Doutras vezes eu ficava na porta de acesso e colocava a perna para fora por um vão, como para superar o medo, já que os mais velhos nos recomendavam para que jamais colocassemos a cabeça pela janela, pois uma ponte poderia nos decapitar. Quando alguém puxava conversa, aí fazíamos grandes amizades em um pequeno intervalo de horas. Perguntávamos tudo para qualquer pessoa que encontrássemos disposta a conversar e ouvíamos histórias inacreditáveis, que precisavam ser acreditadas para tornar a viagem mais valiosa e memorável. Sempre se levava uns trocados para comprar alguma coisa no vagão/restaurante, onde era comum encontrar alguém em altas no "trago", um casal de namorados se beijando como nos filmes de Greta Garbo e alguém tentando vender alguma coisa, na ausência do fiscal que aparecia sempre de surpresa e conferia o bilhete para furar ou ver se estava furado. Se não estivesse com o bilhete em mãos, descia na próxima estação.
Assim foi até meus 15 anos, quando após ficar um verdadeiro expert em vagões, experimentei viajar no famoso "Trem Minuano" da RFFSA, em ligação "semi-direta" de Alegrete à capital (não parava nas encantadoras estaçõezinhas das vilas). Parecia um ônibus, as poltronas deitavam e os banheiros eram incrivelmente llimpos (dizia-se que nem parecia um trem de tão limpo). O restaurante tinha um certo charme, os frequentadores tomavam whisky, campari, coqueteis e antes de chegarmos à capital, surgiam as "ferromoças" trazendo bandejas com o desjejum composto por taça de café, um pãozinho, geléias, manteiga, garfinho e faca de plástico.
O romantismo dos trens de passageiros foi embora. Ficou a lembrança daquelas viagens demoradas e saborosas, com gosto de campo, entre as paisagens de um Rio Grande que ainda estava cheio de florestas e que foi ficando no passado, dando lugar a enormes áreas desmatadas e povoadas de gado ou tomadas de lavouras.
Hoje, viajar de carro é comum, mas muito mais perigoso que se equilibrar sobre os trilhos que se perderam no passado. Atualmente, nos ônibus a regra é o silêncio, o cuidado, a prevenção. Acredita-se que o assassino, o assaltante, o bandido, todos eles podem estar reunidos em poltronas próximas às nossas e, se for viagem de avião, qualquer pessoa, de qualquer origem, classe ou estilo, torna-se suspeita à primeira palavra dita, mas se ficar muito silenciosa, também é suspeita
O mundo mudou tanto e parece que foi ontem que embarcávamos no trem e aguardavamos o "soco" do maquinista que conferia se os vagões estavam devidamente encaixados. Antes do dia da viagem eu olhava minha mãe tocar manivela para falar ao telefone com os parentes para que nos esperassem em casa pois iríamos da estação com um "carro de praça".
A evolução é estraordinária, facilita nossas vidas, dá conforto, mas é um convite à preguissa e um risco para o romantismo. Tudo vai ficando frio e calculado quando não nos deixamos levar pelo espírito da boa aventura, como era nas viagens de trem do passado. Hoje embarcamos nos ônibus e aviões pensando se a viagem será rápida e se teremos tempo de voltar no mesmo dia. Ninguém consegue lembrar o que aconteceu na última vez que foi da capital a uma cidade distante, lá na fronteira. O silêncio e o medo são as companhias dos passageiros modernos.
Soube que na Argentina as viagens de trem continuam acontecendo e que há uma linha que vai de Santo Tomé, no lado argentino do Rio Uruguai, até Buenos Aires com duração de 24 horas. Estou planejando com a minha eterna namorada embarcar nessa viagem, mas acho que os argentinos vão estranhar um brasileiro no vagão. Pelo que fiquei sabendo com meu ex-colega de faculdade, o Dorneles, de São Borja, as viagens por lá não são tão democráticas como eram as nossas.
Mesmo assim, acho que vale a pena.

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